QUALIDADE FÍSICA, QUÍMICA E MICROBIOLÓGICA DO LEITE DE CABRA

Taissa de Souza Canaes1, Jeane Ferreira de Jesus2, Henrique Gribler do Amaral3
1 - Instituto Federal de Educação, CIência e Tecnologia Baiano, Campus Bom Jesus da Lapa
2 - Instituto Federal de Educação, CIência e Tecnologia Baiano, Campus Bom Jesus da Lapa
3 - Instituto Federal de Educação, CIência e Tecnologia Baiano, Campus Bom Jesus da Lapa

RESUMO -

A caprinocultura é conhecida e difundida, mas apresenta realidades diferentes nas diversas regiões do país. É possível encontrar produções de leite para subsistência e produções industriais de leite fluido, em pó, iogurtes e queijos finos. A industrialização de subprodutos caprinos por empresas nacionais e até multinacionais é recente no país quando comparado ao leite de outras espécies, porém, sua distribuição ainda está concentrada em seletos mercados em grandes centros comerciais, principalmente na região sudeste, maior produtora de leite caprino no país.
O leite de cabra além de representar um importante papel social, possui alta digestibilidade e valor nutritivo. Porém, apesar das vantagens nutricionais dos produtos caprinos, principalmente do leite, muitas vezes o consumo é limitado pelo preconceito ou pelo esteriótipo de ser um produto terapêutico. Não obstante apesar de terem sido parcialmente resolvidas algumas questões referentes ao melhoramento da qualidade sanitária do leite, o sabor continua constituindo critério decisivo de qualidade, utilizado pelo consumidor para selecionar os fornecedores. Tendo em vista estas questões, a viabilização de produtos de qualidade poderá resultar em um aumento da aceitabilidade, com consequente ampliação da agroindústria regional, contribuindo desta forma, para a melhoria do nível de vida e fixação do homem ao meio rural e, sobretudo, influenciando positivamente na segurança alimentar e nutricional. Nesta revisão, serão abordados alguns fatores que afetam a qualidade química, física e microbiológica do leite de cabra, como o estresse, a alimentação, o manejo, o estádio da lactação e a raça.

Palavras-chave: ácidos graxos, caprinos, estresse, gordura

PHYSICAL, CHEMICAL AND MICROBIOLOGICAL QUALITY OF GOAT MILK

ABSTRACT - The goat breeding is known and diffused, but presents different realities in the different regions of the country. It is possible to find subsistence milk productions and industrial productions of fluid milk, powder, yoghurts, and fine cheeses. The industrialization of goat by-products by domestic and even multinational companies is recent in the country when compared to milk of other species, but its distribution is still concentrated in select markets in large commercial centers, mainly in the southeast region, the largest producer of goat milk in the country Goat milk, besides representing an important social role, has high digestibility and nutritive value. However, despite the nutritional advantages of goat products, especially milk, consumption is often limited by the prejudice or stereotype of being a therapeutic product. Although some issues concerning the improvement of the sanitary quality of milk have been partly resolved, flavor remains a decisive quality criterion used by the consumer to select suppliers. In view of these issues, the viability of quality products may result in an increase in acceptability, with consequent expansion of the regional agroindustry, thus contributing to the improvement of the standard of living and the establishment of man in rural areas and, above all, Food and nutrition security. In this review, we will discuss some factors that affect the chemical, physical and microbiological quality of goat milk, such as stress, feeding, management, lactation stage and breed.
Keywords: fatty acids, goats, stress, fat


Revisão Bibliográfica

Composição do leite de cabra A raça Saanen é a raça leiteira mais difundida no mundo, originária do Vale de Saanen e cantões de Berna, Suíça, apresenta um crescimento significativo no Brasil. A pelagem é uniformemente branca, os pelos são curtos, finos e cerrados (RIBEIRO, 1997). A produção de leite média no Brasil está estimada em 2,34 ± 0,63 kg/dia. Aliada à elevada digestibilidade, encontra-se o excelente valor nutricional do leite de cabra, conferido pelas características particulares das suas frações proteica e lipídica, nomeadamente no que se refere à menor dimensão dos glóbulos de gordura, com predominância de ácidos graxos de cadeira curta e ao elevado valor biológico das proteínas, quando comparado com o leite de outras espécies. Além disso, as partículas gordurosas no leite de cabra são menores, proporcionando uma maior área de superfície para ação enzimática, facilitando sua digestão. Outro fato característico do leite desta espécie é a ausência de aglutinina, presente no leite de outros animais domésticos, que impede que as partículas gordurosas do leite se juntem, formando um coalho de difícil digestão (MAREE, 1985). A fração lipídica é um dos mais importantes componentes na qualidade tecnológica e nutricional do leite de cabra (CHILLIARD et al., 2003) e segundo DELACROIX-BUCHET & LAMBERET (2000) está diretamente envolvido na cor e sabor dos subprodutos de cabras leiteiras. Quanto ao teor de lactose o leite caprino é idêntico ao leite bovino, variando em função do estádio de lactação 4,4% a 4,7% (MENS, 1991). O leite normalmente apresenta pouca variabilidade no teor de lactose, isto ocorre porque esse componente é um dos principais responsáveis pela osmolaridade do leite (SWAISGOOD, 1996). Há semelhança quanto ao teor de proteína bruta dos leites de vaca e cabra, porém, a constituição é diferente. O leite de cabra e vaca contém proporções similares de κ-caseína (10-24%) e αs2-caseína (5-19%), entretanto, o leite de cabra contém altos níveis de β-caseína (42-64% versus 34-41%) e baixos teores de αs1-caseína (4-26% versus 36-40%) comparado ao de vaca (CLARK & SHERBON, 2000). Já a acidez do leite de cabra varia entre 12 e 14° Dornic, no momento da ordenha, podendo variar em função da concentração de caseína nas diferentes fases da lactação (MENS, 1991).   Ácidos graxos no leite de cabra Mais de 400 ácidos graxos tem sido encontrado na gordura do leite, porém, somente 10 (C4, C6, C8, C10, C12, C14, C16, C18, C18:1 cis e C18:1 trans) determinam as características físico-químicas (SPREER, 1995). O leite de cabra apresenta praticamente o dobro (18%) de conteúdo de ácidos graxos de cadeia curta (C4 a C10) quando comparado ao leite de vaca (10%) (FETT & LUIZ, 1998; MENS, 1991; BRENNAND et al., 1989); entre eles, maiores concentrações de ácido capróico (C6), caprílico (C8), cáprico (C10), (MAREE, 1985; JENNESS, 1980), butírico (C4), láurico (C12), mirístico (C14), palmítico (C16) e linoléico (C18:2), mas também quantidades menores dos ácidos esteárico (C18:0) e oléico (C18:1) (JENNESS, 1980). Os ácidos láurico (C12), mirístico (C14) e palmítico (C16) têm sido associados epidemiologicamente a doenças cardiovasculares por induzirem o aumento de colesterol no sangue e, por isso, pesquisas tem focado a atenção na diminuição do percentual destes componentes no leite (SALLES et al., 2002). A maior concentração de ácidos graxos de cadeia curta no leite caprino parece estar associada ao desenvolvimento do aroma e sabor característicos do produto desta espécie (PARK, 2001). Além disso, os ácidos graxos também exercem importante papel como reguladores metabólicos e podem modular a resposta imune (MEADE & MERTIN, 1978). Essa resposta imunitária pode estar relacionada à dieta, regulando a susceptibilidade a infecções (MERTIN & HUNT, 1976; PRICKETT et al., 1984). Desta forma, alterações na composição destes ácidos graxos pela dieta podem ser importantes no sistema de defesa do animal.   Fatores que afetam a composição do leite As características físico-químicas e sensoriais do leite podem ser alteradas devido a alguns fatores tais como: individuais, fisiológicos, nutricionais (JENSEN, 1995), ambientais (WALSTRA & JENNESS, 1987), genéticos, enfermidades (DÜRR, 2001), fraudes do produto, como por exemplo, adição de água, bicarbonato de sódio ou antibiótico. Dentre estes, a alimentação tem sido um fator preponderante na manipulação dos componentes do leite, principalmente em relação ao perfil lipídico, o qual implica diretamente no seu sabor e odor (PARK, 2001). Durante o período de mastite, os teores de lactose, gordura e caseínas são reduzidos e os de sais e de enzimas (do sangue, tecido ou de células somáticas) aumentam, assim, o aumento de lipases causa elevação de ácidos graxos livres, responsáveis por sabor e aroma indesejáveis no leite.   Influência do estresse sobre a qualidade do leite O estresse é um fenômeno complexo que tem sido investigado sob diferentes perspectivas. A resposta ao estresse envolve a ativação do sistema nervoso autônomo, bem como a ativação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), com conseqüente aumento de catecolaminas e glicocorticóides, respectivamente (BISPO & LANZIOTTI, 1998). Animais submetidos a manejos estressantes têm apresentado aumentos nos níveis de cortisol e glicose sanguínea (DUVAUX-PONTER et al., 2003), relacionados à ativação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, aumento da taxa de gliconeogênese e diminuição moderada da taxa de utilização de glicose pelas células. A produção imediata de glicose após o estresse pode advir da potencialização da glicogenólise, enquanto sua manutenção por períodos mais longos decorre da gliconeogênese de substratos, incluindo o lactato e aminoácidos (VIJAYAN et al., 1997). O estresse pode promover alterações na composição do leite causando diminuição principalmente nos teores de sólidos totais, proteína e gordura além de afetar o sistema imune dos animais devido à liberação de cortisol e catecolaminas (CRARY et al., 1983; LANDMANN et al., 1984), podendo consequentemente provocar um aumento de perdas de células secretoras pelo úbere ocasionando uma elevação na contagem de células somáticas (CCS) no leite. Em vacas submetidas a manejos estressantes foi encontrado um aumento na contagem de células somáticas, com maior liberação de neutrófilos circulantes (YAGI et al., 2004). Como resultado de mudanças hormonais observadas durante o estresse, lipídeos armazenados na forma de triglicerídeos são convertidos a glicerol e ácidos graxos pela lipólise. De fato, a lipólise estimulada pelo cortisol, catecolaminas e GH é inibida na presença de insulina (DESBOROUGH, 2000). Considerando que a glicemia tem sido utilizada como indicador de estresse, um aumento nas concentrações de glicose pode inibir a lipólise e consequente produção de ácidos graxos de cadeia curta responsáveis pelo sabor do leite de cabra. Contudo, a adição de algumas ervas aromáticas na alimentação pode ser útil na diminuição do estresse por trazer benefícios ao bem-estar dos animais (HOSODA et al., 2006).   Efeito da alimentação na qualidade do leite A alimentação tem sido um fator preponderante na manipulação dos constituintes do leite (GOETSCH et al., 2001), sendo responsável por, aproximadamente, 50% da variação do teor de gordura (SUTTON & MORANT, 1989). Os teores de lactose e proteína variam pouco em função da dieta, mas pequenas mudanças são possíveis nos teores de proteína via maior ingestão lipídica (SUTTON, 1989). GOETSCH et al. (2001) ressaltaram que o efeito da dieta está diretamente associado às condições hormonais, tais como o efeito da insulina sobre os níveis de absorção da glicose e propionato, os quais podem modificar o status plasmático de glicose e a síntese de gorduras. São inúmeras as variedades de alimentos que podem e são utilizados na alimentação de ruminantes, mas seu valor nutricional é determinado por uma complexa interação entre seus constituintes além da própria condição fisiológica do animal (MERTENS, 1994). Por outro lado, o estado de desenvolvimento da forragem afeta o nível de ácidos graxos de cadeia longa (COULON et al., 2003). Estes autores observaram que quando os animais eram alimentados por pastagem no estado precoce os teores eram mais elevados, do que quando comparados ao estado tardio. MOIO et al. (1996) observaram aroma desagradável no leite de ovelhas alimentadas com grãos quando comparado à alimentação por forragem, este aroma desagradável foi associado ao aumento da concentração de aldeídos. Recentemente, MATSUSHITA et al. (2007) observaram alterações na composição de ácidos graxos do leite de cabras Saanen alimentadas com dietas enriquecidas com óleos vegetais. CHILLIARD et al. (2001) reportaram que dietas contendo mais que 60% de silagem de milho, aumentaram 12 a 14 % a concentração de ácido mirísitico (C14) e 30 a 34 % de ácido palmítico (C16). Os mesmos autores citaram ainda, um aumento de 6 a 11% de ácido esteárico (C18:0) e 18 a 23 % de ácido oléico (C18:1), os quais são considerados desejáveis nutricionalmente. Portanto, a alimentação utilizada na dieta dos animais leiteiros deve ser rigorosamente selecionada de modo a garantir não somente os requerimentos nutricionais, mas também as características sensoriais do leite.


Referências

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