Quality turn e seus desdobramentos sobre o sistema agroalimentar tradicional: a re (conexão) entre produtores e consumidores

Filipe Mello Dorneles1, Marielen Aline Costa da Silva2, Anelise Daniela Schinaider3, Arthur Fernandes Bettencourt4
1 - Universidade Federal do Pampa
2 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
3 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
4 - Universidade Federal do Pampa

RESUMO -

A demanda por alimentos cresce constantemente para atender as exigências do mercado, entretanto o mesmo encontra-se sob pressão para garantir, de forma sustentável, a segurança alimentar e o fornecimento de alimentos de qualidade para a sociedade. No entanto, a própria industrialização é percebida como um processo que pode distanciar o alimento das pessoas, na medida em que dificulta a percepção da origem dos ingredientes que compõe um determinado alimento. Nesse sentido, observa-se uma mudança na demanda de alimentos industrializados, para uma demanda de valorização de produtos tradicionais e de proximidade espacial. A partir daí os sistemas agroalimentares alternativos, como as cadeias curtas e demais estratégias de re (conexão) entre produtores e consumidores, passam a ser compreendidas como exemplos de reciprocidade, demonstrando qualidade e confiança nos produtos ofertados. A chegada de novas formas de produção e consumo, que emergem como alternativa aos questionamentos sobre os limites e incongruências da agricultura moderna ganham força e destaque a partir de 1990 (Goodman, 2002), com o chamado movimento quality turn, conhecido no Brasil como virada da qualidade. Dessa forma, o presente ensaio tem como objetivo compreender o surgimento do quality turn e seus desdobramentos sobre o sistema agroalimentar tradicional. Atualmente, o movimento de “virada da qualidade” vem ganhando notoriedade frente ao cenário mundial e empresas transnacionais associadas a produção de alimentos. Por fim, embora carregado de valores sociais, ambientais e tradicionais, os sistemas agroalimentares alternativos, não representam uma estrutura substitutiva as formas convencionais e hegemônicas de produção de alimentos. Todavia, apresentam-se como uma possibilidade de dinamização de economias locais em regiões rurais especificas, bem como apresentam-se como uma oportunidade de escolha para determinados movimentos de consumidores mais conscientes e críticos a produção de alimentos.

Palavras-chave: Quality Turn, Segurança Alimentar, Sustentabilidade, Agronegócio

Quality turn and it’s developments on the traditional agricultural system: the re (connection) between producers and consumers

ABSTRACT - The demand for food is constantly increasing to meet the demands of the market, but it is under pressure to ensure, in a sustainable way, food security and the provision of quality food for society. However, industrialization itself is perceived as a process that can distract food from people, in that it makes it difficult to perceive the origin of the ingredients that make up a given food. In this sense, there is a change in the demand for industrialized food, for a demand for valorization of traditional products and spatial proximity. From that point on, alternative agrifood systems, such as short chains and other strategies of re (connection) between producers and consumers, are understood as examples of reciprocity, showing quality and trust in the products offered. The arrival of new forms of production and consumption that emerge as an alternative to the questions about the limits and incongruities of modern agriculture gain strength and highlight from 1990 (Goodman, 2002), with the so-called quality turn movement, known in Brazil as the turning Of quality. Thus, the present essay aims to understand the appearance of the quality turn and its unfolding on the traditional agri-food system. Nowadays, the "quality turn" movement has been gaining notoriety vis-a-vis the world scenario and transnational corporations associated with food production. Finally, although loaded with social, environmental and traditional values, alternative agrifood systems, does not represent a substitute structure the conventional and hegemonic forms of food production. However, they present themselves as a possibility to stimulate local economies in specific rural regions, as well as being an opportunity to choose for certain movements of consumers more conscious and critical the production of food.
Keywords: Quality Turn, Food Security, Sustainability, Agribusiness


Revisão Bibliográfica

O cenário agroalimentar cresce constantemente na produção de alimentos para atender a demanda existente no mercado, entretanto o mesmo encontra-se sob pressão para assegurar, de forma sustentável, a segurança alimentar e o fornecimento de alimentos certificados e de qualidade para a sociedade (CGEE, 2014). Proença (2010) argumenta que a própria industrialização é percebida como um processo que pode distanciar o alimento das pessoas, na medida em que, muitas vezes, pode dificultar a percepção da origem e/ou dos ingredientes que compõem um determinado alimento. Além disso, o papel dos alimentos como itens de consumo “especiais” intensificam as discussões acerca dos inúmeros escândalos alimentares, envolvendo a contaminação de produtos, e aumentam a pressão sobre os sistemas agroalimentares hegemônicos. Cada vez mais, observa-se uma mudança na demanda de alimentos industrializados e padronizados, para uma demanda de valorização de produtos tradicionais e de proximidade espacial. Nunca se buscou tanta informação sobre alimentação, fato demonstrado pela expansão dos veículos de comunicação como publicações escritas, programas televisivos e sites, com os profissionais da mídia realimentando esse interesse (PROENÇA, 2010). Neste contexto, os sistemas agroalimentares alternativos (AAFN), como as cadeias curtas e demais estratégias de re (conexão) entre produtores e consumidores, passam a ser compreendidas como exemplos de reciprocidade entre produtor e comprador, demonstrando qualidade e confiança nos produtos ofertados. O surgimento de novas formas de produção e consumo, que emergem como resposta e alternativa aos diversos questionamentos sobre os limites e incongruências da agricultura moderna (problemas ambientais, insegurança alimentar, alimentos processados industrialmente e sem valor nutritivo), ganham força e destaque a partir da década de 1990 (Goodman, 2002), com o chamado movimento quality turn, conhecido no Brasil como virada da qualidade. Dessa forma, o presente ensaio tem como objetivo compreender o surgimento do quality turn e seus desdobramentos sobre o sistema agroalimentar tradicional. Ou seja, entender quais aspectos levaram a valorização dos AAFN, as principais mudanças no padrão de consumo da sociedade atual e suas consequências sobre parte do agronegócio. No contexto dos estilos de vida, a maioria dos consumidores de alimentos, cada vez mais frenéticos, compra sem pensar no efeito cascata de suas escolhas. Ao mesmo tempo, surge uma preocupação maior com a comida saudável, o que coloca duas tendências contraditórias: a comida barata e prática versus alimentos saudáveis (MORGAN e MORLEY, 2002). Além dos problemas de saúde pública, que agravaram-se a partir da década de 1990, outros fatores como os riscos alimentares, ou seja, desastres causados por problemas alimentares, como o caso da vaca louca na Europa, o consumo crescente de produtos extremamente processados e o problema do excesso do uso de agrotóxicos no cultivo de alimentos, como indica Morgan (2006), impulsionaram debates e críticas por parte de pesquisadores, sobre o sistema agroalimentar tradicional, suas convenções fortemente padronizados de qualidade e a lógica da produção de mercadorias em massa. Além disso, os custos ambientais intrínsecos a produção associados principalmente com a intensificação da produção agrícola (declínio da fertilidade do solo, poluição da água, problemas de bem-estar animal, perda de habitats valiosos e características da paisagem), o transporte de alimentos, por longas distâncias, e a troca desnecessária do mesmo produto entre nações, seu consumo de combustíveis fósseis, bem como o transporte de animais e as possíveis proliferações de doenças, como é o caso da febre aftosa, também foram e são pautas chaves dos debates acerca dos sistemas agroalimentares (MORGAN E MORLEY,2002). Segundo Cassol e Schneider (2015), o desenvolvimento de novas formas de produção e consumo alimentar está vinculado ao processo mais geral denominado de quality turn, em que a questão agroalimentar passa por um movimento em direção à qualidade alicerçada na confiança, na tradição local e em novas formas de organização econômica, como mostra a Figura 1. Para Goodman (2003), o quality turn concede, desta forma, que os consumidores concretizem ligações confiáveis com os alimentos, e os produtores criem e desenvolvam formas autônomas de produção e comercialização. Kneafsey et al. (2008) enfatiza este movimento com o propósito dos consumidores conhecerem um pouco sobre a origem da sua comida, do que é feita, como é produzida e por quem. Mais especificamente, o quality turn é expressado por meio de um conjunto de relações e valores que se baseiam em uma tríade ligada à importância das dimensões relacionadas ao produto; ao lugar; e ao processo - know-how-do, ou seja, o saber-fazer inerente da cultura de cada região ou advindo do próprio agricultor (ILBERY et al., 2005). Essas três dimensões objetivam à defesa da produção local de alimentos, a valorização de produtos tradicionais e a consolidação de estruturas sociais e econômicas, buscando construir alternativas ao modelo convencional do mercado econômico. Sendo assim, o quality turn engloba claramente duas perspectivas analíticas distintas: a perspectiva da reconexão e a perspectiva da “origem do alimento”, em que a primeira salienta o vínculo com o produto e com o consumidor final; e a segunda perspectiva trata da produção local dos alimentos em relação aos valores culturais vinculados aos territórios e à tradição local (FONTE, 2008). Atualmente, o movimento de “virada da qualidade” vem ganhando, cada vez mais, notoriedade frente ao cenário mundial e empresas transnacionais associadas a produção de alimentos. No Brasil, vários autores vêm introduzindo esse movimento no meio acadêmico através das práticas sociais e ambientais no contexto social, tais como Ferrari (2011) em que verifica como os pequenos agricultores familiares do estado de Santa Catarina vêm criando lógicas locais que permitem aproximar o produtor com o consumidor. Além do meio acadêmico, Thomé e Schneider (2010) salientam que o Brasil vem sofrendo, desde o ano de 2008, diversos escândalos em relação a adulterações do leite em laticínios de grande porte. Segundo os autores, diante das desconfianças em relação à origem e qualidade do leite processado industrialmente, muitos consumidores se preocuparam e, em alguns casos, passaram a procurar alternativas para evitar o consumo do leite UHT, que estava sob suspeita de adulteração. Vale ressaltar, que as bases do quality turn, como a relocalização, não beneficiam apenas pequenos produtores. Segundo Morgan e Sonnino (2008), a localização defensiva pode levar à apropriação pelos atores mais fortes, como é o caso das grandes redes de comercialização de alimentos que estão convencionalizando o setor de produção de orgânicos. Para D. Goodman, Dupuis e M. Goodman (2012) as formas “alternativas” geralmente são apropriadas pelo modelo “convencional”, com o intuito de responder a demandas de consumidores por produtos sustentáveis e mais justos. A “virada da qualidade” acaba, como afirmam Cassol e Schneider (2015), reconhecendo a reflexividade dos consumidores em relação a suas escolhas alimentares.  De modo que, tal reflexividade pode ser percebida em dimensões políticas como o boicote de produtos não sustentáveis. De acordo com Callon, Méadel e Rabeharisoa (2002), em sociedades cada vez mais secularizadas, os consumidores dotados de alto grau de informação e poder aquisitivo tornam-se um elemento decisivo na orientação da competição entre empresas, que passam a disputar sua preferência e curvar-se aos seus interesses e desejos. Com a incidência cada vez maior de escândalos alimentares na década de 1990, emergiu no cenário mundial um movimento de consumidores em busca de escolhas alimentares mais saudáveis e justas, tornando o ato alimentar um ato político, cultural e não apenas hedonista. Diante do exposto, percebe-se um comportamento do consumidor, cada vez mais, ciente do que deseja consumir, optando por uma qualidade de vida saudável em prol do meio ambiente, do bem-estar animal e social. A busca pelo conhecimento a respeito da origem e processamento dos alimentos como fator chave da tomada de decisão de compra dos consumidores, nos permite repensar a qualidade dos alimentos e por consequência os sistemas agroalimentares. Neste contexto, sistemas agroalimentares alternativos como cadeias curtas, alimentos tradicionais, entre outros, trazem ao mercado um resgate histórico dos produtos. Ou seja, os produtos passam a ser valorizados por seus fatores culturais que identificam e valorizam os modos de vida simples. No entanto, é importante ressaltar que embora carregado de valores sociais, ambientais e tradicionais, os sistemas agroalimentares alternativos, não representa uma estrutura substitutiva as formas convencionais e hegemônicas de produção de alimentos. Todavia, apresentam-se como uma possibilidade de dinamização de economias locais em regiões rurais especificas, bem como apresentam-se como uma oportunidade de escolha para determinados movimentos de consumidores mais conscientes e críticos a produção de alimentos. Por fim, conforme relatado no presente ensaio, a (re)conexão entre consumidor e produtor estreita o elo de transações econômicas e de estruturação do mercado alimentar, resgatando a origem dos produtos “mais tradicionais” do meio rural e construindo estratégias que atuam na valorização de modos de vidas coloniais. Neste sentido, os sistemas agroalimentares não convencionais, bem como quality turn demonstram a importância de um processo que busca perpetuar novas gerações capazes de compreender o valor de suas escolhas, não apenas como ato individual, assim como promover a capacidade dessas gerações de valorizar as tradições, o meio rural e dessa forma construir uma sociedade apta a promover o desenvolvimento com mais equidade, consciência ambiental e justiça social.

Gráficos e Tabelas




Referências

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