Zootecnia de Precisão (ZP): Conceitos, aplicações e desafios

Luciane Silva Martello1
1 - ZEB/FZEA/USP

RESUMO -

Pode-se afirmar que a ZP tem ganhado espaço no setor agropecuário, sobretudo quando se entende que há uma necessidade cada vez maior para monitoramento e controle de todos os processos que envolvem a produção animal. Diversos tipos de sistemas inteligentes estão disponíveis ou em desenvolvimento para utilização na zootecnia, possibilitando a automação, controle e monitoramento contínuo dos animais e do seu ambiente, contribuindo com uma gestão mais eficaz e moderna.
No entanto, a massificação da aplicação desses sistemas na zootecnia depende dos avanços das pesquisas nessa área. Desenvolvimentos tecnológicos futuros em automação e dispositivos eletrônicos contribuirão para uma zootecnia mais precisa, rentável e sustentável. O potencial brasileiro para adoção da ZP é enorme e merece atenção dos setores envolvidos.

Palavras-chave: Bem estar animal, zootecnia de precisão, zootecnia

Precision Animal Production (PAP): Concepts, applications and challenges

ABSTRACT - It can be stated that the (PAP) has gained space in the agricultural sector, especially when it is understood that there is a growing need for monitoring and control of all the processes that involve animal production. Various types of intelligent systems are available or under development for use in animal husbandry, enabling the automation, control and continuous monitoring of animals and their environment, contributing to a more efficient and modern management. However, the widespread application of these systems in animal husbandry depends on advances in research in this area. Future technological developments in automation and electronic devices will contribute to a more accurate, profitable and sustainable animal husbandry. The Brazilian potential for adoption of the ZP is enormous and deserves attention from the sectors involved.
Keywords: Animal welfare, precision animal production, animal science


Revisão Bibliográfica

Desde o ano 2000 a pecuária brasileira tem demonstrado sinais de amadurecimento, com desenvolvimento de tecnologias próprias nas áreas de nutrição, genética, reprodução e gerenciamento da produção. A partir deste período, o Brasil alcança patamares de grande exportador e produtor mundial de carne bovina, suína e de aves. Inserido em um contexto globalizado, o mercado pecuário apresenta uma tendência de um mercado bastante competitivo, com reduzidas margens de lucro, impulsionando o setor produtivo a um aumento da eficiência de produção. Outra tendência importante trata do perfil do consumidor, o qual está mais exigente, na busca por alimentos saudáveis, de qualidade, produzidos em uma base sustentável e com boa procedência. Do lado produtivo, há uma mudança no perfil do produtor, o qual tem se estabelecido com um modelo empresarial de gestão, necessitando, cada vez mais, de tecnologias que possam auxiliar o controle de todos os processos que envolvem o sistema de produção. Nesse sentido, observa-se uma tendência, cada vez maior, da produção animal como uma atividade baseada em uma gestão mais precisa, menos dependente de situações casuísticas, apoiando-se em decisões inteligentes para a tomada de decisão (Fontes, 2016). Esse cenário tem impulsionado a demanda por sistemas informatizados e automatizados aplicados à zootecnia, originando o conceito de Zootecnia de Precisão (ZP). A ZP é um conceito de gestão aplicado ao sistema produtivo e não deve ser confundida com o simples uso de tecnologias no sistema produtivo, embora, não raro, para adoção do conceito de precisão será necessário lançar mão de tecnologias. Isso significa dizer que utilizar equipamentos eletrônicos sofisticados (alimentadores automatizados, dispositivos de monitoramento de atividade animal, GPS, por ex.) só contribuirá para uma gestão precisa se tais dados se transformarem em informações gerenciais, auxiliando na tomada de decisão em uma base diária para o produtor. Isso significa: Precisão na Produção Animal. Nesse sentido, observa-se o aumento da demanda pelo desenvolvimento de novas tecnologias para aplicação na zootecnia. Em um processo produtivo existem muitas variáveis envolvidas e que são passíveis de monitoramento, seja por parte do animal como do ambiente em que ele é criado. Dessa forma, monitorar características relacionadas aos aspectos de saúde animal, reprodução, produção e bem-estar do animal, além das variáveis que envolvem o ambiente e seus aspectos de sustentabilidade, de modo contínuo, e muitas vezes em tempo real, demandam o desenvolvimento de sistemas informatizados e automatizados aplicados à zootecnia. Um dos motivadores para se adotar o conceito de ZP é assegurar o controle e o monitoramento de processos importantes para a produção, uma vez que isso possibilita a redução de perdas e a otimização desses processos. Tais processos estão relacionados às atividades de alimentação, de controle sanitário e reprodutivo, além daqueles relacionados ao ambiente de criação, bem-estar animal e aspectos relativos à economia, rastreabilidade e gestão da produção (Berckman, 2008). Os avanços nas áreas de eletrônica, micro e nano tecnologias, tecnologia de informação, processamento de imagens, assim como o desenvolvimento de algoritmos e softwares inteligentes tem contribuído muito para o avanço e aplicação da ZP. Na produção animal e agroindústria, a mais de 15 anos, já se faz uso de sistemas inteligentes e com diferentes níveis de complexidade. Existem sistemas bem elaborados, que monitoraram um determinado processo ou característica e, mediante alguma adversidade ou ocorrência indesejada, respondem a esse problema de forma inteligente, evitando o agravamento da situação. Um exemplo desse sistema é o monitoramento do ambiente térmico de uma granja de frangos, no qual pode ser acionado um alarme sonoro ou no aplicativo de um celular, caso a temperatura interna ultrapasse àquela considerada como de conforto para os animais. Também pode-se utilizar ventiladores e nebulizadores interligados no sistema afim de manter o controle do microclima interno. Em um nível de maior complexidade, com sistemas de automação mais sofisticados, pode-se controlar o fornecimento de ração em função de índices zootécnicos desejáveis. Nesse caso, lança-se mão do uso de algoritmos e modelos biológicos sofisticados como partes importantes desse sistema (Ivey, 1999). A produção animal moderna, sobretudo àquela com base em sistema intensivo, deve ser avaliada de modo sistêmico, administrando todos os processos envolvidos na produção, desde o bem-estar do animal, tratamento dos resíduos e subprodutos, impacto no meio ambiente, qualidade do produto final, trabalho dos empregados até a rentabilidade do sistema. Para isso, é importante segmentar a produção em vários processos, realizando a gestão da produção animal com base na tecnologia da engenharia de processos. A partir disso, procura-se otimizar cada um dos processos para que assim, o “todo” seja maximizado, obtendo-se a máxima eficiência na produção animal. O conceito de precisão pode ser aplicado em várias áreas da produção animal. A seguir, de modo breve, alguns deles estão descritos: Na área de nutrição animal: existem sistemas comerciais de cochos eletrônicos para bovinos, os quais monitoram o consumo diário e individual dos animais confinados, bem como seu ganho de peso diário. O sistema armazena todos esses dados em um banco de dados e depois são transformados em informações gerenciais importantes, contribuindo para a tomada de decisões sobre o confinamento, como venda ou descarte de animais por exemplo (Banhazi et al., 2012). Na área de sanidade e controle de doenças: pode-se utilizar vídeo-imagem dos animais para monitorar problemas relativos a doenças de casco de vacas de leite (laminite). Trata-se de algoritmos sofisticados, baseados em processamento de imagem, os quais são capazes de identificar se o animal está mancando ou não por meio da sua postura no momento da caminhada (Song et al., 2008). Outro exemplo é o uso de sinais de som para avaliação de doenças respiratórias em suínos, o qual monitora o som dos espirros e tosses dos animais. Tais sinais são interpretados e podem ou não indicar a presença de doenças em determinado lote de animais (Kawagishi et al. 2015, Ferrari et al. 2008). A termografia de infravermelha também é uma ferramenta tecnológica que tem sido estudada para diagnosticar algumas doenças importantes, como mastite e laminite (Polat et al. 2009, Hovinen et al., 2008). Trata-se de uma ferramenta não-invasiva e passível de automatização. Alguns estudos têm sido direcionados para realizar o diagnóstico precoce de doenças, como mastite (Figuras 1 e 2), e auxiliar o produtor ou técnico a tomar medidas adequadas para que a doença não se instale ou se agrave. Na área reprodutiva: existem sensores que monitoram o nível de atividade e ou número de passos diários para indicar a presença de cio em bovinos. Os sensores registram esses movimentos e comparam os dados de cada animal com o seu próprio padrão de atividade ou número de passos, obtidos até 10 dias antes. Um sinal de alerta é emitido quando o sistema detecta uma alteração no padrão de atividade do animal, auxiliando na observação da presença ou não de cio (Valenza et al., 2012). A ZP pode ser aplicada além da etapa de produção, podendo apoiar também a Agroindústria e as Pesquisas na área agropecuária. A agroindústria tem lançado mão do uso de tecnologias avançadas para auxiliar vários processos importantes, como é o caso de processos relacionados com a avaliação de carcaças em frigoríficos europeus. Uso de análise de imagens para avaliação de rendimentos de cortes, conformação e acabamento de gordura já é uma realidade na agroindústria europeia (Craigie et al, 2013). No campo da pesquisa, dispositivos eletrônicos para monitoramento de características fisiológicas (temperatura corporal, Ph ruminal, etc.) e uso de gps, associado a técnicas de geoprocessamento, para monitorar comportamento de bovinos a pasto tem contribuído muito para geração de novos conhecimentos na área animal (Laca, 2009).   Desafios para adoção da ZP   A aplicação dos conceitos de ZP pode apoiar o produtor e o empresário do setor agropecuário da mesma forma que vem ocorrendo com a Agricultura de Precisão para o setor agrícola. No entanto, a produção animal apresenta grandes desafios comparado ao setor agrícola, sobretudo porque ela envolve o monitoramento de animais, os quais são seres sencientes, que possuem capacidade de sentir e reagir ao ambiente. Portanto, além de monitorar os processos físicos envolvidos no sistema de produção (o ambiente e suas características) é de extrema importância monitorar a resposta animal e isso acrescenta maior complexidade ao sistema de monitoramento. Porém, com o monitoramento do animal, obtém-se respostas precisas sobre o seu desempenho, saúde e bem-estar. Dessa forma, o conhecimento sobre a interação dos processos biológicos e físicos é um grande desafio para os profissionais e pesquisadores dessa área, uma vez que, para tal, é necessário envolver diferentes áreas da ciência. Os animais possuem processos biológicos complexos e importantes e que devem ser monitorados, como a temperatura, a frequência respiratória, o comportamento animal, entre outros. No entanto, os animais respondem de modo único ao seu ambiente, seja em intensidade ou frequência diferentes, acrescentando uma complexidade maior para interpretação dos dados (Berckman, 2008). Resultados mais precisos serão obtidos com o monitoramento automático, contínuo e em tempo real, das características envolvidas no processo produtivo. Para isso é preciso investir em tecnologias que coletem e interpretem os dados, transformando-os em informações claras sobre determinada situação. Outros desafios para adoção do conceito de precisão na zootecnia também foram citados por Pinheiro et al. (2007) e podem estar relacionados com: a) Incerteza do tempo necessário para o retorno do investimento; b) Falta de confiança nos sistemas tecnológicos desenvolvidos para a produção animal; c) Desenvolvimento incompleto da tecnologia, não raro, tornando determinado sistema incompatível com outras tecnologias complementares; d) Necessidade de tecnologias acessíveis; e) Dificuldade de interpretação das respostas biológicas; f) Dificuldade de adoção de novas tecnologias por parte dos produtores; g) Mercado ainda pequeno – sensores e sistemas de monitoramento não são desenvolvidos especificamente para os animais: os sistemas de monitoramento são adaptados aos diversos sistemas de produção animal e à análise dos sinais emitidos pelos animais; h) Adoção da ZP não pode ser generalizada: cada sistema de produção deve traçar um objetivo específico daquele sistema: o que é bom para um produtor pode não ser para outro; i) Necessidade de colaboração próxima entre pesquisadores e fabricantes de dispositivos eletrônicos.   Motivadores para adoção da ZP Por outro lado, se os desafios são grandes, os motivadores e razões para adotar a ZP também os são, e podem ser destacados a seguir: a) A adoção da ZP pode apoiar o produtor com a gestão animal, suprindo, de certa forma, a redução da oferta de técnicos experientes para trabalhar na produção; b) Possibilita atender as exigências mercadológicas para produtos de origem animal com especificações rigorosas de qualidade e segurança; c) Capacidade de monitorar alguns fatores tendencialmente incompatíveis como por exemplo: a emissão de gases poluentes para a atmosfera x taxa ótima de crescimento animal e a produção em grande escala e de modo intensivo x oferecer boas condições de bem-estar-animal; d) Possibilita armazenamento de dados e de registros históricos de modo eletrônico e contínuo, contribuindo para a segurança na qualidade e na rastreabilidade; e) Possibilita o gerenciamento à distância; f) Agiliza a tomada de decisão, contribuindo com maior lucratividade e redução de perdas: Ex.: descarte de animais improdutivos, alteração de manejo alimentar, antecipação do diagnóstico de doenças, entre outros. Por fim, pode-se afirmar que a ZP tem ganhado espaço no setor agropecuário, sobretudo quando se entende que há uma necessidade cada vez maior para monitoramento e controle de todos os processos que envolvem a produção animal. Diversos tipos de sistemas inteligentes estão disponíveis ou em desenvolvimento para utilização na zootecnia, possibilitando a automação, controle e monitoramento contínuo dos animais e do seu ambiente, contribuindo com uma gestão mais eficaz e moderna. No entanto, a massificação da aplicação desses sistemas na zootecnia depende dos avanços das pesquisas nessa área. Desenvolvimentos tecnológicos futuros em automação e dispositivos eletrônicos contribuirão para uma zootecnia mais precisa, rentável e sustentável. O potencial brasileiro para adoção da ZP é enorme e merece atenção dos setores envolvidos.

Gráficos e Tabelas




Referências

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